"Para muitos cristãos, a Bíblia é como licença de software: eles não lêem, mas clicam em 'Concordo' no final".
(@almightygod)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

MANHATTAN

* Por Eric Brandão

A música tem um poder diferenciado em relação às diversas artes que o mundo oferece. Naturalmente, qualquer tipo de manifestação, seja a da fotografia, pintura, literária ou teatral já é uma vitória, haja vista o fato de vivermos num mundo cujos valores passam quase que a totalidade do seu tempo buscando provar que nem tudo é tão belo a ponto de ser expresso em forma de arte. É fato que as pessoas mentem, machucam, erram, tropeçam sob as mais variadas alegações. Por outro lado, esses mesmo indivíduos carregam, fundidos a tais valores equivocados, uma centelha quase divina, um poder de invenção capaz de constituir novos horizontes, colocar no mundo um mundo melhor. Clarice Lispector, por exemplo, dizia que a arte escrita é a constatação de que a vida não basta. Concordo, e, pessoalmente, fico o escritor francês Marcel Proust, que afirmava que todo e qualquer ser humano tem um artista dentro de si. Proust não conhecia o Brasil, mas sem dúvida, somos a prova viva de tal afirmação, comprovada diariamente nos escritórios, nas salas de aula, nas barracas de feira, nos carrinhos dos catadores de papel, nas igrejas e grupos assistenciais, nos aventais das empregadas domésticas, no trânsito, e em tudo o que constitui a realidade de uma população de terceiro mundo que, a despeito de todas as lascas, ainda encontra talento para sorrir. Isso também é arte, é transgressão da vida medíocre.
Mas a música, dizíamos, faz conosco o que quase nada sabe fazer: por meio da simples audição somos levados a lugares, momentos, pessoas, em questão de milésimos. A diversidade de músicas que existem no universo é tão rica quanto os acontecimentos da vida, a ponto de podermos associar a cada instante uma trilha sonora, e ainda assim sobrarem canções para mais algumas vidas inteiras.
Sem contar que também podemos visitar lugares em que nunca estivemos. Só nesta semana já visitei Londres, Paris, alguns lugares do Oriente Médio e hoje termino minha jornada desembarcando em Manhattan, belíssima ilha urbanizada, um dos distritos de Nova Iorque. De mãos dadas comigo, todo o meu presente: pessoas que me são queridas passeiam ao meu lado, boné e óculos escuros, a sorrir despreocupadas com um amanhã que ainda não se fez. No ápice da música, abraço meu amor e estendo as vistas para a extensão do Central Park, certo de valeu a pena criar coragem para tomar o avião, enfrentar as atribulações da viagem, só para estar ali, naqueles segundos, tendo a alma cercada de movimento. A música acaba, meu corpo retorna, mas meu imaginário continua lá, a observar o cair das horas, os prédios e suas constelações de janelas acesas, a noite imensa. Sussurro em voz baixa que a amo, dou boa-tarde às pedras, sonho e abençôo em pensamento a inspiração de quem, pelas notas de seu instrumento, me tomou pelas mãos e me entregou a mais essa parcela de sorriso. Aperto o play novamente, respiro bem fundo, vou de novo; e quem quiser, me empreste os ouvidos e venha comigo, a musicar o lado doce da vida, que é de todos, como as canções.

> Trilha sonora: ‘Manhattan’, de Eric Johnson.



* ERIC BRANDÃO é músico profissional, professor, cronista e poeta. Vocalista e guitarrista da banda Divino Soul possui o blog Canta Conta Mais. Valeu Eric!

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